segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Direitos Humanos e Soberania

Christiane Ramos
Acadêmica do 5° semestre de Relações Internacionais da UNAMA



            O ano de 2014 foi um período que apresentou sérios desafios à comunidade internacional. Os acontecimentos variaram desde a epidemia do Ebola ao combate à ascensão do Estado Islâmico, por meio de uma coalizão militar formada pelos Estados Unidos em consonância com outros países. Agora, em 2015, os problemas pelos quais o sistema internacional enfrentou se alastram e se tornam questões de segurança internacional. O fato mais recente que causou comoção mundial foi a execução de prisioneiros na Indonésia, dentre eles, um brasileiro, sob a acusação de tráfico de drogas. Isso abriu uma discussão sobre até que ponto a soberania estatal é legítima quando fere os direitos fundamentais do homem. E mais: a soberania de um Estado é inviolável mesmo quando se trata de proteger a dignidade humana? Este é um tema complexo, mas é possível produzir considerações iniciais sobre o assunto.
            Instituído em 1648, o Estado é tradicionalmente considerado o principal ator das relações internacionais. O Capítulo I da Carta das Nações Unidas, que trata dos propósitos e princípios da organização, profere que “todos os membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a dependência política de qualquer Estado”. Neste sentido, a ONU, como institucionalização da governança global para a paz e segurança internacionais, confia na soberania estatal como um instrumento para evitar conflitos, e o respeito à ela (soberania), por parte de outros Estados, é um meio de construção da paz.
Contudo, ainda neste capítulo, pondera-se que o ideal de soberania, de não-intervenção e de independência “não prejudicará a aplicação das medidas coercitivas constantes do Capítulo VII”, que define, no artigo 39, que o Conselho de Segurança possui a função de determinar a existência de uma possível ameaça à paz e segurança internacionais e que, portanto, decidirá quando tomar as medidas prescritas nos artigos 41 e 42. O artigo 41 prevê ações que não envolvem a utilização da violência, mas que podem ser eficazes para o restabelecimento da paz, no caso de uma ameaça surgir. As medidas “poderão incluir a interrupção completa ou parcial das relações econômicas, dos meios de comunicação, ferroviários, marítimos aéreos, postais, telegráficos, radiofônicos ou de outra qualquer espécie e o rompimento das relações diplomáticas”.
           

         Em um ambiente internacional interdependente e complexo, representar uma ameaça à paz e segurança internacionais pode ser muito custoso aos atores internacionais, sobretudo quando se trata dos Estados. Contudo, os acontecimentos atuais revelam que nem só de Estados se fazem as relações internacionais. O ISIS, Boko Haram, a Al Qaeda, dentre outros, não possuem respaldo no direito internacional e, deste modo, a aplicação das medidas da ONU se tornam potencialmente prejudicadas. As redes terroristas, em especial, que sujeitam a dignidade humana aos interesses particulares, são incógnitas na política internacional. Não pertencem – legalmente – a qualquer que seja o território, e suas ações, apesar de serem reais, são também virtuais (DER DERIAN, 2010). Além do mais, dificilmente as medidas do artigo 41 seriam eficazes a esses grupos. Prejudicariam muito mais os países aos quais estão instalados, do que a própria organização terrorista, que possuem meios financeiros próprios e que geralmente não respondem com legalidade as relações econômicas internacionais. Por isso, o artigo 42 recomenda que:


           No caso de o Conselho de Segurança considerar que as medidas previstas no artigo 41 seriam ou demonstraram que são inadequadas, poderá levar e efeito, por meio de forças aéreas, navais ou terrestres, a ação que julgar necessária para manter ou reestabelecer a paz e segurança internacionais. Tal ação poderá compreender demonstrações, bloqueios e outras operações por parte das forças aéreas, navais ou terrestres dos Membros das Nações Unidas.

          Neste caso, a utilização da força, com consentimento da ONU, por meio do ideal de segurança coletiva, seria legitimado, não havendo, portanto, uma agressão à soberania estatal, mas uma resposta à uma intimidação inicial, resultando no estabelecimento de forças para contê-la. Ainda assim, a Carta da ONU está baseada nos Estados como sujeitos de direito internacional e apesar de compreender que os direitos humanos e o respeito à dignidade humana são pontos cruciais para a construção da paz, quando se trata da ação de atores não-estatais contra a população para alcançar fins político-religiosos, as medidas da ONU são praticamente irrelevantes, até porque as Nações Unidas representam um símbolo ocidental hegemônico (de acordo com o ponto de vista dos radicais) e os grupos terroristas do Oriente são justamente uma contra-hegemonia à dominação, divergindo do Ocidente tanto em interesses e interpretações da realidade, quanto em ações.

          Apesar de tudo, as Missões de Paz da ONU existem sem estarem respaldadas na Carta. Isso pode representar tanto um empenho em resolver os problemas mundiais, como a fome, as doenças, as guerras civis, quanto uma ação para fazer prevalecer os interesses dos Estados dominantes. Não se sabe, por meio da Carta, quais as funções e atribuições das Missões de Paz e das intervenções humanitárias, e isso pode abrir um caminho para atos imprecisos e equivocados, especialmente quando a decisão de intervenção emana de um grupo particular, seleto e restrito das Nações Unidas, o Conselho de Segurança.
O Estado é, acima de tudo, uma construção social, e como tal, seus membros, ou seja, a população, vive uma intensa relação de construção de identidade com a estrutura e vice-versa. Significados são produzidos e reinventados e tornam o vínculo entre os nacionais e a estrutura (Estado) muito estreito. Por isso, as intenções e as causas de intervenção e quebra de soberania estatal devem ser bastante discutidas – porque não se dissolveria apenas a soberania, mas um símbolo coletivo –.  Para Hobbes, o Estado é o corpo político que surgiu para tranquilizar o ambiente de incertezas e medos que a natureza humana proporcionava aos indivíduos. O Leviatã passou então, a comandar os mais diversos aspectos da vida humana. Este é o direito do Estado, como objeto surgido do consenso entre as pessoas. Contudo, até mesmo para o teórico inglês, um dos três grandes inspiradores filosóficos realistas, o indivíduo não pode ser destituído da vida nem por outros indivíduos, nem por parte do Estado. Ele tem direito à sobrevivência (CASTRO, 2012, p. 316).
          A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) expõe que “o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo” (1948). Portanto, assim como a Carta das Nações Unidas, a DUDH também confia na dignidade humana para a construção da paz. A soberania, apesar de ser um conceito presente na política mundial, está, em certos termos, passível a observações quando a dignidade da população é violada.  Portanto, para finalizar esta breve reflexão, vejamos o que, de acordo com Diniz, o ex-secretário geral da ONU, Broutos Broutos-Ghali pensa sobre intervenção humanitária, direitos humanos e soberania estatal.

      A intervenção humanitária, como objetiva à proteção das vítimas do conflito [por conflito, pode-se imaginar qualquer situação capaz de pôr em risco a sobrevivência humana], acaba por reafirmar aquilo que ela estaria violando, ou seja, a soberania. Isso porque a intervenção humanitária restaura a proteção dos civis que estão envolvidos no conflito e, consequentemente, acaba por restaurar o vínculo do Estado com os nacionais. É por meio, então, da violação da soberania, nos termos das teorias tradicionais, que se garante que a soberania do Estado perdure (2011, p. 60).

           
           
           
Referências:

CARTA das Nações Unidas. 26 de junho de 1945.

CASTRO, T. Teoria das relações internacionais. Brasília: FUNAG, 2012.

DECLARAÇÃO Universal dos Direitos Humanos. 10 de dezembro de 1948.

DERIAN, James Der. Terrorismo no século XXI: real, virtual ou banal? IN: Terrorismo e Relações Internacionais: perspectivas e desafios para o século XXI. Org.: Mônica Herz e Arthur Bernardes do Amaral. Rio de Janeiro: PUC-RIO: Loyola, 2010.


DINIZ, M. G. A. A tensão entre os conceitos de soberania e intervenção humanitária nos discursos do ex-Secretário-Geral da ONU Broutos Broutos-Ghali. Belo Horizonte: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Programa de pós-graduação em Relações Internacionais, Belo Horizonte, 2011.

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